segunda-feira, 17 de maio de 2010

O Cinema de “Autor” ou O Burro de Zaratustra

-“Mãe: quando for grande, quero ser um grande artista!” – afirma o petiz.
-“ Ò filho, deus te dê um futuro melhor.” – Responde a mãe.
-“Mas eu quero mãe, eu quero...”;
-“ Então, nesse caso, o melhor é ires para a academia aprender a fazer alguma coisa, filho, a ver se te fazes gente.”

Após entrar para a escola, inicia-se para a criança um processo que lhe ocupará o resto da vida. A aprendizagem, o conhecimento de tudo o que já foi feito, o perceber de como foi feito, o obter da informação que lhe permita saber como se faz. Durante este percurso, estará sempre condicionada pela sua própria capacidade de apreensão, pela sua memória, pelo que pensam os seus “mestres” acerca da vida e dos conceitos que têm, valores que lhe serão impostos e ditos na generalidade como verdade absoluta. Surgem desde logo os horários, os trabalhos de casa, a competição com os demais na procura de saber, quem de todos eles é o melhor, ou então, o mais “desadaptado”. Surge a angústia daqueles, que “realmente” não possuem as virtudes dos “predestinados” – “ O seu filho não tem ouvido para a música. O melhor é tentar pôr o menino na pintura. Olhe; eu até tenho uma prima que é a directora de uma escola muito boa e perto de sua casa!”

O que na mais das vezes se verifica, é que, os meninos de voz doce, desistem da ideia de serem “cantores”, porque tudo isto é muito mais difícil do que parece. Apesar de gostarem de cantar, apesar de saberem cantar afinado, para se “poder” “cantar” é surpreendentemente necessário saber toda uma panóplia de conhecimentos culturais, sem os quais lhe fica interdita a vocação. Os que conseguem sobreviver a esta “guerra” são os mais bem preparados. Os que são mais “inteligentes”, os que têm maior capacidade de aprendizagem, os que com mais paciência e atenção ouvem os ensinamentos dos “mestres”, não faltam á escola, concordam com o que lhes dizem, não colocam grandes questões, têm dinheiro para se formar. Mesmo nas academias de arte “contemporânea”, as coisas funcionam da mesma forma. Seja qual forem os motivos, o conjunto de valores que regem e caracterizam a sua tendência, vão impor ao aluno uma forma de pensar e agir, submetida aos “valores superiores á vida”, em vigor nessa sociedade escolar. Uns conservam as tendências clássicas da academia, outros aprendem que o artista é aquele que rompe com o passado, outros assumem uma das novas tendências pós-modernas. Todos eles têm uma característica comum: falam de uma forma comprometida, todos são subordinados, escravizados ao que pensam, vergados pela força da sua própria razão e têm medo. Medo de não serem reconhecidos, não serem aceites por uma sociedade cultural, em que todos se vêm presos a uma teia de interesses materiais, extremamente pegajosa, porque sentem que o “desemprego artístico” do homem de coragem, é um desfecho mais do que comum. A história está carregada de grandes heróis mortos pela miséria e a fome, ou então, bêbados, formula tão comum, que é fácil encontrar nas pessoas a opinião de que os “artistas” são mas é uns malandros, que querem viver á custa dos impostos que o “povo do trabalho” paga. “Mas então ando eu aqui a trabalhar para depois vir aquele gajo dar baile e dizer que fez em filme da branca de neve e não filmou nada? Se não devolver o nosso dinheiro, cadeia com ele.” É a isto que se sujeita o assalariado do povo. No cinema, porque se trata de uma manifestação cultural extremamente cara e de poucas garantias comerciais, não tem restado outra alternativa aos “artistas”, que não seja a submissão às mãos do governo, ou mais recentemente, ao poder dos multimédia, ou às fórmulas de sucesso do “cinema comercial”, que oferece ao povo aquilo que ele quer e exige ver, portanto um tipo de autoria em que a autor está perfeitamente dominado, manietado.
A autoria resultante deste tipo de enquadramento, tem que ser sempre submetida a regras e valores perfeitamente determinados e estabelecidos. É perfeitamente natural, que o “investidor” queira ter todas as garantias que o seu dinheiro seja empregue em algo de útil, portanto num objecto que tenha uma finalidade bem determinada e específica. As “ferramentas” disponíveis que são permitidas ao autor utilizar, são a sua própria cultura, a sua capacidade racional, adaptando os andamentos á música que ouve no seu posto de trabalho. Só os mais bem preparados vingam nesta selecção natural. Há que reconhecer grandes méritos a quem, porque pode ser qualquer um, consegue atingir com êxito esta finalidade. Os mesmos méritos têm os políticos que ganham as eleições, os comerciantes que detêm as maiores fatias do mercado, os industriais que fabricam os melhores produtos, as pessoas que têm empregos superiormente remunerados. Todos eles têm uma característica comum: são extremamente bem adaptados a um sistema que servem, porque serve os seus desejos da fama, da fortuna, do reconhecimento, na mais das vezes aceite pela imposição da força de quem pode, porque detém o poder do dinheiro e do lóbi. Assim, a criança, aprende sempre a mesma coisa. Seja uma escola de “arte”, seja uma escola de vida.

Estou a chorar. Sinto-me triste, angustiado, ansioso. Ao fundo das escadas, pela fresta da porta em frente, consigo ver o meu piano. Pouso as mãos nas teclas, e começo a ouvir os sons das cordas percutidas por martelos. As suas vibrações entraram pelas pontas dos meus dedos directas ao meu peito. Soa uma, depois duas, depois três notas soltas. Canto uma canção qualquer, envolta por frases sem sentido. Passam uma, duas horas. “Anda jantar!” – gritam. E vou. Como com apetite, converso com todos, rio com prazer das caras que os meus filhos fazem ao comer a pescada cozida que detestam. Sinto-me bem muito bem. Independentemente dos motivos da razão, eu amo o caos, a contradição, gosto de me deixar levar pelo instinto, pela intuição. Adoro fazer coisas sem sentido, amo tudo o que me apetece amar, sem a razão em mim.

Autoria cultural, autoria não cultural. O autor comprometido, é aquele que cria com a razão. O autor descomprometido, é aquele que cria de forma leve, intuitiva, instintiva. A razão serve o sistema. O instinto cria novos sistemas. A cultura alimenta o sistema. A intuição mata-o á fome.

Quero reservar o direito á contradição. É uma forma menos doentia e redutora de viver. Não é que não se entendam os motivos da razão, os da cultura, e a sua grande utilidade para a organização do complexo mundo em que vivemos. Só não se admite, que a razão castre as vozes das almas, não lhe permitindo o direito á vida. Tenho para mim, que tudo isto é muito pouco filosófico e tem um só responsável: o mercantilismo. Todos estamos dependentes de uma rentabilidade mensal que nos permita viver de forma digna. Acontece, que as obras de autor, aquelas que são criadas de forma monologante, tendo portanto, única e exclusivamente presentes, a unicidade de características que definem uma única entidade, não têm utilidade social, portanto não são passíveis de gerar riqueza, visto que realmente não servem para nada, porque são banais. A vontade de posse, para fazer um indivíduo pagar por uma obra, passa por reconhecer a sua aura, ou, lhe possa de alguma forma, ser útil a si próprio . Que aura ou utilidade, pode ter um objecto que pela forma que é criado, pode ser materializado por qualquer um? – “Assim também eu sou capaz.” Durante o século XX, fruto da ruptura da arte académica de finais do século IX, surgiram variados tipos de propostas estéticas. Só que este processo, é paralelo ao processo Nietzscheano no que se refere á morte de Deus. O homem matou Deus, mas ao reconhecer-se como o seu assassino, tratou de o substituir na responsabilidade de carregar os fardos dos novos valores, entretanto estabelecidos. Nada mudou. O niilismo característico de uma sociedade envolta de interesses, só a custo muda de forma, e continua presente, a alastrar por todo o lado, tal cancro social. Da mesma forma, o homem matou a academia, mas substituiu-a pela retórica, na defesa de novos valores, suportados em novas definições de arte, em novas regras teóricas, em novos processos de legitimação artística, só ao alcance de quem detém o controle do poder. Continuamos vergados á força da cultura, á força da razão. As coisas tornaram-se ainda mais complicadas, pois agora nem o naturalmente virtuoso, nem o bom artesão ou o hábil instrumentista, serão reconhecidos, sem que a sua afirmação estética, seja aceite por quem detém o poder. Assim vemos por todo o lado, surgirem objectos de características marcadamente culturais, com o seu criador vergado ao peso da razão e do mercantilismo.

No entanto, por motivos da razão, vemos ser por completo impossível, que as coisas deixem de ser assim. É evidente que o direito que nós temos, porque vivemos em sociedade, de poder escolher só aquilo que nos interessa, é perfeitamente legítimo. A razão é uma característica do homem, como o são a intuição e o instinto. Obviamente que o trabalho custa a todos, e todos estamos obrigados a cumpri-lo. É preferível a um artista, o do domínio da alma, subtrair algum do tempo a que tem direito, para se dedicar a fazer algo de útil. Ou se cultiva, e passa de uma forma consciente, a elaborar obra cultural, ou vai ter que se dedicar a outra coisa qualquer. A menos que seja um Homem de grande coragem, um Homem verdadeiramente do domínio da arte.

Para além dos criativos, há quem se sinta bem, a interpretar, a avaliar, a estudar o trabalho dos outros, e há quem tenha escolhido o mercado da “arte” para investir as suas poupanças, seja na aquisição de objectos, seja na concretização de projectos caros, como o cinema é exemplo. Enquanto os primeiros legitimam as modas, as correntes, ditam as leis do mercado, os segundos, tornam viáveis os processos. Como todos são interdependentes, para que tudo corra conforme o previsto, o que se observa, é que no seu conjunto formam a verdadeira força selectiva, que legitima e destrói a vontade de poder dos pobres dos “artistas”. São os donos da bola. No entanto, eles próprios carregam o fardo dos valores em curso. São também submissos. Uns porque querem continuar agarrados ao poder, outros porque estão dependentes de uma estratégia económico-financeira rigidamente delineada. Cada um de nós carrega o próprio fardo da vida. Aqui também não é possível ser artista. Quem entre os críticos tem a coragem de assumir uma postura, em que a multiplicidade de pontos de vista ocorra? – Nenhum. Esta postura implica o abolir dos princípios, que suportam toda a coerência da sua razão. Assim, o que se verifica, é que cada um dos críticos se dedica a tomar partido, o que melhor lhe convir, tendo em conta a rede de conhecimentos e influencias em que está inserido, não hesitando em reagir de forma completamente destrutiva, a tudo aquilo que por um ou outro motivo, sai fora do seu alvo de interesses.

Os teóricos, transportam a responsabilidade cultural. Deste grupo, também fazem também parte e coabitam, os professores, sendo que um teórico pode ou não dar aulas, e que o professor pode ser também um teórico. É curioso notar que é comum, um teórico ou um professor, serem eles próprios autores. Os críticos é que não se atrevem a tal. Estão sempre muito mais próximos do público consumidor, do que dos autores e “artistas”. Entre o público, estão muitos indivíduos que secretamente criam as suas próprias obras. É aqui que se encontram artistas genuinamente do domínio da alma. Não estão comprometidos, a sua atitude é desinteressada, estão-se nas tintas para todos os demais, criam conforme querem, e não têm medo de ninguém, porque não têm que ter. Entramos no mundo da autoria não cultural. Ao contrário do homem da cultura, que tem que abrir uma gaveta para a guardar, é aqui, no meio do povo, que é possível encontrar as manifestações mais características de arte instintiva, intuitiva, a do domínio da alma. São as tais obras que realmente não servem para nada. São de tal forma desinteressadas, que são quase sempre destruídas, após a sua elaboração.
Autoria cultural, autoria não cultural. Não se trata de quantificar méritos, nem valorizar a alma em detrimento do corpo. Trata-se isso sim, de observar a realidade que pressinto á minha volta.

No cinema, as coisas complicam-se e muito quando fala-mos no cinema de autor. Há quem afirme mesmo a sua inexistência. E por múltiplos motivos, a começar pela forma que é materializado, desde a intervenção activa, e marcante, de múltiplos intervenientes que impedem, pela lógica da razão, de se descortinar um autor único, dentro da globalidade da obra. Ela é multidisciplinar, como atestam, a catrafilada de Óscares que é necessário distribuir, sempre que se atribuem distinções aos autores. Para além disso, se definirmos como cinema de autor, como sendo as marcas pessoais que cada realizador deixa na sua obra, torna-se difícil encontrar cinema que não seja de autor. Claro está, que sempre podemos delimitar uma qualquer área, e daí falarmos em cinema de autor, e está o problema resolvido. No entanto, está questão ganha sentido, se comparar as várias posturas que os realizadores podem assumir, no decurso das suas carreiras artísticas. Talvez seja possível dividir no cinema três grandes grupos: “o cinema comercial”, as “correntes cinematográficas” e o que decidi-mos definir como “cinema de autor”.

No cinema comercial, está em primeira linha, o interesse pelo público espectador. Há uma serie de pormenores que são tidos em conta, ainda antes da decisão do conteúdo, tanto narrativo como morfológico, de um guião. Temos a decisão do público-alvo, após a qual, observam-se o máximo de características dessa massa humana, tanto ao nível social, como político, modas, gosto, hábitos, costumes, tradições, enfim... Quanto maior a informação recolhida, menor será o risco de um fracasso económico, visto que o conteúdo da mensagem poderá ser entendida por muitos. Esta é uma postura dialogante, pelo que é necessário falar uma linguagem, o mais universal possível. A elaboração do guião, obedecerá a uma série de pressupostos teóricos, normalmente já anteriormente testados, ingredientes de uma receita de sucesso. A produção, assegura uma gestão de recursos e meios optimizados, ao nível do escrupuloso cuidado, na observação da dualidade investimento/retorno. Na rodagem e na montagem serão cumpridas a preceito, todas as performances bem ao gosto do público. Entre os actores, há sempre uma ou duas estrelas. Os média darão a maior cobertura possível. Na maior parte dos casos, no processo de decisão, o realizador tem um campo predefinido de acção, que não pode ultrapassar, devendo cumprir a tarefa, para a qual é pago pelo “investidor”. Trata-se sem sombra de dúvida, de um óptimo exemplo da utilização da razão e da cultura, na elaboração de objectos artísticos. Em todas as artes, estão presentes objectos, concebidos utilizando este tipo de construção. O entretenimento que produzem, legitima a sua acção como útil. Tem uma finalidade tão específica e definida, como tem um objecto qualquer. E não é menos útil; antes pelo contrário.

As correntes cinematográficas, surgem frequentemente, de uma rotura com as técnicas tradicionais do cinema, ruptura que invariavelmente, é legitimada por um discurso estético que defende os novos valores, as novas imposições. Todos aqueles que virem nesta mudança, uma oportunidade de afirmação, adoptam os seus valores, e passam numa repetetividade curiosa, a “criar” um sem número de novos filmes, que coerentemente cumprem, todos os valores assumidos. Curioso é observar, que a rebeldia demonstrada pelo mentor, o autor desse processo, tem como consequência a submissão, dos seguidores que vão estabelecer a corrente. Curiosos... são autores completamente diferentes. Os mentores criam, diria Nietzsche, os que tiveram a coragem de pousar alguns dos fardos que transportam. Os seguidores são outro tipo de artista, que preferem continuar a carregar. É o eterno retorno. A acção dos críticos e dos teóricos na legitimação das correntes, assim como a sua divulgação, pelos meios audiovisuais, e de multimédia, garantirá a aprendizagem por parte do público, destas novas linguagens.

2 comentários:

  1. Confesso que fiquei um pouco confusa mas como dizem os ingleses: é concerteza "Food for thought"!! Tágide

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  2. Desculpa Tágide. Quero agradecer a tua amável presença. Se te apetecer podemos conversar para tentar esclarecer ideias. Este texto é realmente um pouco gago. lol

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